Violência contra criança nem sempre é fácil de se detectar. No ambiente escolar menos ainda. Primeiro porque na maioria das vezes esses são espaços são considerados seguros, livres de perigos. Segundo, porque nem sempre as marcas aparecem de forma clara no corpo do jovem, sendo preciso atenção constante para perceber sinais que indiquem problemas.
Quando a vulnerabilidade dos menores é posta à luz nestes espaços, um debate antigo surge provocando tensões: a quem cabe fiscalizar e acompanhar a vida das crianças na rotina escolar? De um lado, há quem acredite que a instituição de ensino deve ser integralmente responsável pelo aluno que está em suas dependências. Por outro lado, há quem defenda que certos assuntos só devem ser tratados dentro de casa, limitando, assim, a atuação das instituições.
E neste dilema, a criança vai vivendo o dia a dia escolar tendo dificuldades de se abrir sobre assuntos que a machucam, questões caras para a sua saúde física e mental. Phd em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a psicopedagoga Adelaide Alves Dias, do Departamento de Psicopedagogia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), defende que a escola precisa parar de ser vista como um espaço livre de abusos. Revelando suas potenciais violências é possível tentar sanar os problemas.
“A escola está inserida num contexto, numa comunidade e numa sociedade. Se você tem uma sociedade pacifista, a escola, como um dos elementos dessa sociedade, terá essas características. Será uma escola onde impera a cultura da paz. Ao contrário, se você tem uma escola que está inserida em um contexto que estimula a violência, uma sociedade que banaliza e estandardiza a violência, essa escola fatalmente estará sob os efeitos dessa violência que a circunda”, disse a especialista.
A psicopedagoga defende que só iluminando as violências que operam dentro das escolas se pode traçar estratégias para proteger as crianças dentro delas. “A violência é um fenômeno muito complexo e não é só um aspecto que deve ser analisado quando a gente fala desse problema, mas seguramente é preciso que a sociedade e os pais compreendam que a escola não é uma ilha. Ela não está segura porque nossa sociedade não está segura. A escola é parte integrante da sociedade, então ela sofre todas as consequências e está sujeita ao que acontece nesses casos de violência”, destacou.
EXPOR O PROBLEMA PARA TER A SOLUÇÃO
Entendendo que a escola em si não é um espaço onde a paz das crianças é garantia, é preciso que os pais busquem entender o que acontece no universo dos filhos quando eles lá estão. “Os pais não podem entender que a escola é um lugar seguro e ficar despreocupados. Família e escola devem estar atentas a questão da segurança dos alunos. Os pais precisam tomar mais cuidado, se informar na escola como são as práticas, que tipo de atividades são feitas, conversar com os filhos em casa”, reforçou Adelaide Alves.
Aos pais, dedicar parte do dia para ouvir os filhos pode ajudar a entender a dinâmica escolar e sua relação com os agentes que a compõe, podendo identificar não somente se o filho sofre algum tipo de violência, mas também se o mesmo pode ser um possível agressor, diz Adelaide Alves.
“É preciso que os pais conversem muito com seus filhos, na perspectiva de compreender como está sendo a dinâmica escolar e como seu filho tem participado. Muitas vezes violências como bullying, assédio, agressões verbais, exclusão podem ser identificadas. Tem o lado do violentado e também do violentador. Ambos precisam ser discutidos, amparados e problematizados no contexto da escola”, disse.
A escola também não pode fingir que violentados e violentadores não fazem parte da sua estrutura, defende a pesquisadora, que reforça que só colocando à luz sobre estas questões é possível diminuir os casos de abusos e violências diárias que acontecem nas instituições de ensino. A ponte com os pais é essencial neste aspecto.
“A escola tem que botar o dedo na ferida e se abrir para fazer uma discussão de mecanismos e estratégias para coibir violência nas escolas. Um dos métodos mais eficazes que nós temos é a abertura do diálogo com as famílias, que a escola se coloque e as famílias saibam o projeto pedagógico da escola. E que a escola coloque as famílias em contexto de diálogo com as coisas que estão acontecendo dentro da escola. É preciso sim esse acompanhamento e que a escola seja essa referência para os pais no sentido que se torne um lugar confiável”.
DIÁLOGO PARA PROMOVER MUDANÇAS
Proteger os mais jovens das violências e abusos sexuais nas escolas perpassa também por ensiná-los sobre educação sexual. Enquanto o assunto não for amplamente discutido nas instituições, crianças e adolescentes estarão encarando o mundo sem o preparo necessário para se proteger das possíveis agressões e ameaças.
“O que tem ser colocado é que as escolas trabalhem a temática da sexualidade para que os jovens entendam essa função no seu corpo. Quando a escola ensina não está ensinando a fazer atos libidinosos. Sexualidade é uma função humana e todos a possuem. Educar para que elas conheçam seu corpo e se protejam em relação a qualquer violação a esse corpo. A escola tem obrigação sim”, defendeu a pesquisadora Adelaide Alves.
As violências e abusos sexuais contra crianças acontecem o tempo todo e em vários lugares. Na rua, em casa, nas escolas. Para a pedagoga Maura Barbosa, da Comunidade Educativa CEDAC, grupo especialista em processos de ensino, gestão e participação comunitária, o atual modelo escolar, antes de tentar resolver o problema, está mais interessado em buscar culpados.
Nas escolas, explica a especialista, é preciso reconhecer a questão e buscar os diálogos para tentar combatê-la.
“A escola precisa de ajuda para poder identificar o problema. Tem muita gente que tem medo de falar, não se sente autorizado. Não tem respaldo. Quando se discute um assunto tão delicado, de que forma a gente vai instrumentalizando os professores, funcionários, famílias e as crianças? Temos que entender isso”, destacou a pedagoga.
ESCOLA, PAIS E ESTADO CONTRA ABUSO
Maura Barbosa defende um trabalho em conjunto entre pais, escola, Estado e entidades, em busca de ferramentas que ajudem no combate às violências dentro das instituições de ensino. “Temos que juntar Secretaria de Saúde, de Educação, a família e fazer um movimento onde esses agentes discutam para buscar solução e não culpados. Enquanto estivermos num jogo de empurra-empurra, estaremos vendo essas coisas acontecendo. Temos que compreender o quanto é importante discutir o assunto de forma consistente não superficial e ai a gente vai poder apoiar inclusive a escola a lidar melhor com o tema”.
A discussão do respeito e da sexualidade, defende a especialista, é outra urgência que precisa fazer parte da pauta escolar, uma vez que ela pode empoderar crianças e jovens a entenderem melhor seu corpo e as tentativas de violá-lo. “Como a gente lida com a questão da sexualidade sem discussão? A gente não conversa sobre isso, não coloca na agenda. E aí as coisas estouram, como está estourando. Esta tem sido uma discussão tabu real. A gente tem evidências, mas põe panos quentes em tudo. Como vamos ajudar os meninos a compreender todo seu desenvolvimento sexual sem discussão? Como vamos ajudar as famílias a olhar os seus filhos? Como incluir isso na reunião da escola? Temos que entender tudo isso para melhorar a relação das crianças, da família e da escola”.
PEQUENOS SÃO OS MAIS VULNERÁVEIS
Dados do Boletim Epidemiológico de junho do ano passado, fornecido pelo Ministério da Saúde, mostram que entre 2011 e 2017 em todo País foram notificados 184.524 casos de violência sexual, sendo 58.037 (31,5%) contra crianças e 83.068 (45%) contra adolescentes. Do total de crianças violentadas, 74,2% eram do sexo feminino e 25,8% masculino. 51,2% tinham entre 1 e 5 anos; 45,5% eram negros; 3,3% possuíam algum tipo de deficiência ou transtorno.
Este quadro reforça a necessidade de se pensar ações mais inteligentes no combate a violência sexual, é o que defende Itamar Gonçalves, gerente de advocacy da Childhood Brasil, entidade sueca que tem como missão promover e defender os direitos das crianças e dos adolescentes, com foco na questão da violência sexual.
“A gente não tem uma política de Estado que trate a questão da prevenção. Costumamos agir quando os casos acontecem, quando se tem a revelação. Mas a gente não chega antes. E o chegar antes é esse trabalho e papel de cada um. Seja nos espaços que as crianças frequentam, como a escola, ou onde moram”, disse.
Para o representante da Childhood Brasil, é preciso preparar as crianças para falar sobre o assunto, mas também os pais e profissionais da educação a ouvir e reconhecer os sinais que possam indicar algum tipo de violência contra os mais jovens.
“Precisamos de toda a comunidade na questão da violência sexual, abuso e exploração. Os profissionais têm que estar preparados a reconhecer esses sinais e falar dessa temática com as crianças e adolescentes. É preciso uma ação sistêmica. Escola, igreja e toda comunidade. Trazer essa informação para a discussão no sentido de trabalhar a autoproteção na criança, não jogando nela essa responsabilidade, mas trazendo para ela os indicadores dessa violência, como ela pode pedir socorro e a quem pedir socorro”, disse Gonçalves.
O especialista também defende a discussão sobre educação sexual dentro das escolas. “O grande equívoco é que muitos acham que falar de educação sexual é ensinar a criança a ter o ato sexual. E não é isso. Você está dando orientações, dizendo que seu corpo é privado e que as pessoas não podem invadir, violar e ferir sua dignidade sexual, falando isso numa linguagem adequada a sua idade. Ensinar que ela pode dizer não e que pode revelar quando ela estiver desconfortável”, disse.
Na opinião de Itamar Gonçalves, o a prevenção contra abuso e violência sexual precisa se tornar uma política pública de fato. “É essa educação para prevenção que não temos. Não existe uma política de Estado propriamente. A informação ainda é a melhor forma de você prevenir esse tipo de ocorrência. Você pode conversar com uma criança quais as partes privadas de um corpo, a questão do consentimento e assim protegê-la”.
Com Correio da Paraíba